3.2.17

Desafio Literário - Textos dos vencedores

Publicamos a seguir a íntegra dos textos produzidos pelos três vencedores do Desafio Literário, competição de escrita criativa organizada pelo IEL durante a última Feira do Livro de Porto Alegre. Durante a competição, que ocorreu em cinco fases eliminatórias realizadas em cinco dias consecutivos, os participantes escreveram sobre temas sorteados em cada data nos seguintes gêneros: miniconto, poetrix, poema livre, crônica e conto. Ao final, foram selecionados vencedores os três participantes que terminaram última fase com a maior pontuação total, classificados nesta ordem: 1) Renata Fonseca Wolff; 2) Flávia Silva de Oliveira; 3) Thiago Pedroso. 


A produção completa dos três primeiros colocados pode ser conferida abaixo: 




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1º lugar - Renata Fonseca Wolff



Miniconto


  Desafio

"Vem aqui", chama o primeiro. "Quero ver", provoca o segundo. "Vou acabar contigo", anuncia o primeiro. "Eu é que vou", ameaça o segundo. "Olha que eu sou louco", avisa o primeiro. "Não como eu", contraria o segundo. "Tá com medo?", pergunta o primeiro. "Medo de nada", responde o segundo. "Vamos logo com isso", impacienta-se o primeiro. "Mas o que está esperando?", reclama o segundo. "Acho que estou nervoso", confessa o primeiro. "Não tem por quê", sorri o segundo. E, afinal, depõem as armas, baixam as defesas, dão-se as mãos e amam-se loucamente.



Poetrix

  Pre(im)potente

Tenho pena de quem domina.
Jamais conhecerá a poesia
De simplesmente ser.




Poema Livre

  Dar à luz

É preciso que se diga
O que não sabe ser dito.
O passo em falso na escada,
O olhar furtivo e aflito,

O grito vão do torturado,
O beijo que mais ninguém viu,
O corpo jogado à calçada,
O último entardecer de abril.

E no silêncio tênue da noite
Surge algo que se escuta.
O pranto corta a madrugada,
A criança chega e luta,

Para dar a si mesma à luz
E chorar para o novo dia
Tudo o que ninguém disse
Tudo o que se esquecia.



Crônica

  Sobre o quase

    Tenho medo de avião.
    A originalidade da fobia é pouca, mas todo o resto - tremor nas mãos, as palpitações, os olhares desesperados para todos em volta, o apelo em murmúrios a divindades a quem o meu natural ceticismo me impede, naturalmente, de recorrer - é intenso. Certa vez, uma leve turbulência, suficiente apenas para que os comissários interrompessem por um minuto o serviço de bordo, me proporcionou a convicção de que a morte trágica se anunciava. 
    Mas não caímos, o que a existência deste texto evidencia. 
    Entretanto, a cada vez que sobrevivo a um voo, ao invés de adquirir mais tranquilidade sobre a segurança do transporte aéreo, o oposto me sucede: se não morri desta vez, aumentam as chances de que eu morra na próxima (a lógica de uma fobia desbrava caminhos tortuosos na mente humana). 
    Parte disso, creio, tem menos a ver com o ato de voar do que com o exercício de desterramento que qualquer viagem, por qualquer meio, representa. Deslocados a terras estranhas (seja numa estrada, cidade ou país desconhecido), tudo passa do certo e corriqueiro para o novo e temerário. Em outras palavras, a qualquer momento, tudo pode dar errado. 
    Viajar é um constante quase.
    Me lembro de chegar em Salvador de madrugada, exausta e com a viagem paga desde Porto Alegre e receber a notícia de que o hotel não tinha a minha reserva. Me lembro de adormecer no ônibus entre Porto Alegre e Estância Velha, de manhã cedo, e acordar em uma parada desconhecida, muito além do destino, sem uma rodoviária ao redor. Me lembro atravessar correndo o aeroporto de Brasília, arrastando a mala atrás de mim, porque errara o portão de embarque. Me lembro de me perder no caminho de carro para Termas do Gravatal.
    Em Buenos Aires, um morador de rua, com quem não conseguia me comunicar, expulsou-me do meu assento no metrô, empunhando um documento que eu não compreendia, o que foi para mim, sem ironia, uma grande lição sobre a consciência cívico-política do povo argentino. Em Pelotas, cada um dos lugares marcados no roteiro fechou-me as portas por um motivo diferente: hoje temos um evento; estamos em atividade interna; em greve; em reformas. Fui ao Mercado Público e me consolei com - o que mais? - doces.
    O que nos escapa, em uma viagem, marca tanto quanto o que se realiza. Em Buenos Aires e Montevidéu, Juan Carlos Onetti me escapou mais de uma vez. Pretendia pesquisá-lo para um texto que escrevia; perdi por um mísero dia a palestra de Hermenegildo Sábat, que o conheceu pessoalmente, na Feira do Livro de Buenos Aires; na biblioteca de Montevidéu, primeiro não souberam dizer onde estava seu acervo, e depois encontrei a biblioteca fechada - vinte minutos antes do horário previsto. Nesse dia, ao fim da tarde, enxerguei o rosto de Onetti em um grande outdoor, bem distante de mim, como se risse do meu fracasso e da sua fuga teimosa e bem-sucedida.
    Mas às vezes o quase basta: o avião que sacudiu e apavorou seus passageiros (uma em particular) mas aterrissou. Os lugares, assim como as pessoas, permanecem. Uma nova visita é sempre possível, driblando os quase e os desencontros, buscando na realidade palpável o que o outdoor promete à distância. Onetti, tenho certeza, aguarda, desafiador e inatingível, o meu próximo desterramento. E não escapará de novo.



Conto

  Despedida

    O marido terminava o café em silêncio; como sempre, café preto. Três colheres de açúcar. Um pão torrado (mas não queimado, que inferno, será tão difícil torrar uma fatia de pão sem queimar?) com uma camada de manteiga não muito grossa, nem muito fina. Ela esperava, com os olhos na toalha da mesa.
    - Fraco - ele disse depois de um gole do café. 
    Ela fechou os olhos. Abriu-os e virou-se para o filho, na cadeira da porta. Ensaiou o sorriso. O menino não sorriu de volta, mastigava devagar o bolo de milho e abaixou a cabeça. Ela ajeitou devagar a mecha de cabelo sobre o rosto.
    - Desculpe - ela sussurrou.
    O marido não respondeu. Levantou, limpou as mãos nas calças e ia saindo da cozinha quando um celular tocou. Ela pegou o aparelho do bolso. Olhou a tela e não atendeu.
    - Quem é a essa hora? - o marido reclamou.
    - Nada.
    - Deixa ver.
    Ela largou o celular sobre a mesa.
    - Dá aqui - ele insistiu mais alto, aproximando a mão estendida.
    Ela alcançou-lhe o aparelho, que parou de tocar. Ele apertou algumas teclas e jogou-o de volta à mesa, sobre o prato de bolo.
    - Diz pra tua irmã não ligar tanto.
    O filho observava ora o pai, ora a mãe. O marido saiu para o quarto, voltou vestindo um casaco. Ela e o filho permaneciam sentados.
    - Não vai limpar a cozinha? - o marido perguntou.
    - Já, já.
    Ele veio até ela, que se encolheu. Por um momento, resvalou os dedos no braço na esposa em um carinho displicente. 
    - Fiquei nervoso ontem -  essas coisas que tu fazes me deixam nervoso.
    Ela fez que sim com a cabeça, sem olhar para o marido. Ele se encaminhou à porta, abriu-a, acenou para o filho e voltou a falar com a esposa:
    - Hoje chego às sete. Vou querer o frango com aquele recheio, mas menos salgado do que da última vez.
     A porta fechou. Ela debruçou-se sobre a mesa, suspirou, absorveu a casa quieta por um minuto. Encarou o filho e, desta vez, ele devolveu um esboço de sorriso. No pratinho colorido à frente do menino, só restavam migalhas do bolo de milho.
    - Quer matar aula hoje? - ela sugeriu.
    - Não. Queria fazer um desenho de dinossauro do filme de ontem e colocar na parede da sala de aula.
    - Depois - ela disse. - Hoje vamos dar um passeio.
    - Para onde?
    Ela levantou, ergueu o filho e trouxe-o ao colo.
    - É surpresa - falou com um beijo na testa do garoto.
    Preparou uma sacola pequena de roupas para si e outra para o filho. Trocou a roupa do menino, penteou-lhe o cabelo, escovou os dentes. Fez o mesmo para si. Olhou-se séria no espelho. O filho abraçou-lhe a cintura. Ela sorriu, pegou as sacolas, tomou o menino pela mão e foi à cozinha. Olhou para a louça suja, a mesa desarrumada, as panelas usadas no fogão. Lembrou a ordem do marido e tirou o frango da geladeira. Colocou-o na pia. Tirou o celular do bolso e chamou o número da irmã, sob as vistas atentas do filho.
    - Chego ao meio-dia - disse à irmã. - Não ligue mais para este número.
    Enfiou o celular dentro do frango com violência e despejou sobre ele todo o sal do saleiro. Saiu da casa de mãos dadas com o filho rumo à rodoviária, o dinheiro economizado em uma bolsinha escondida no sutiã. Escutou alegre a conversa do filho sobre a cor das escamas dos dinossauros e começou a rir sem perceber. 



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2º lugar - Flávia Silva de Oliveira



Miniconto

  Como flocos de neve

Era neve na sua janela. Os flocos pareciam pipocas e alguns batiam no vidro, queriam entrar. Desconheciam o fato de que aquele desejo, aquela curiosidade genuína e heroica teria um desfecho infeliz caso fosse atendido. No entanto, ela sabia que a natureza tinha o seu tempo e que não era certo abrir a janela e deixar os floquinhos se aquecerem e se desmancharem tão brevemente. Eles precisavam lutar, resistir àquela vontade juvenil. O descontrole deles era o seu próprio desespero. Por alguns minutos, desejava que alguém retirasse todas as agulhas e mangueiras do seu corpo e a libertassem de sua condição, ainda que não fosse certo. Contudo, a vontade passava: assim como os flocos de neve, ela também precisava lutar.



Poetrix

  Batalha Poética

Na luta pelo poder do poema
A vitória é de quem morre antes
De presença, de vazio - de palavras.



Poema Livre

  Enquanto te espero

Enquanto nossos passos se desencontram
Coloco-te em meus olhos para que ali me vejas
Entre o corpo dormente de choro e o colo que grita
Aceito que as batidas do ventre já não são tuas
E foges de mim, sem aviso, sem suspiro, sem revolta
Como se tua despedida não permitisse abraços.
Talvez te aches ainda semente
Para minha floresta de esperanças que, por vezes, se esvazia
Mas aguardo teu tempo, sem pranto, sem medo
Pois sei que chegará o nosso momento
E nascerás, argila de brisa, de cor, de luz.



Crônica

  Sobre curar-se

    Eu era ainda criança, entre sete e oito anos, quando escutei, pela primeira vez, com atenção, o que significava viajar. O tio conversava com minha mãe sobre a viagem que faria no outono. Iria para a Austrália. Ele tinha pedido demissão e ficaria longe, no mínimo, por um ano. Dizia ele que a vida era muito curta, que queria conhecer outros lugares, outras culturas, outras pessoas. E partiu. No ano seguinte, nas férias, meu pai organizou uma viagem e coloquei-me a pensar no avião, nas aventuras, nas pessoas diferentes que conheceria. No entanto, o destino era a praia de Cidreira, no litoral gaúcho. No terceiro dia, minha mãe disse “como é bom descansar”, sentada na área da casa alugada. O suspiro que veio em seguida foi o que me marcou.
    Já adulta, quando me casei, a lua de mel foi no Chile, presente das cunhadas que disseram: “Lua de mel sem viagem não vale nada!”. Após o divórcio, meus primos se manifestaram a respeito: “Faça uma viagem, vai fazer bem”.
    Uma viagem traz tantas conotações que nos leva a questionar nossos próprios conceitos de base. Poderíamos pensar a viagem como uma fuga da condição atual, da rotina, da observação repetida das coisas, das pessoas, das atividades. Minha mãe queria descansar. Contudo, esse descanso, percebo hoje, não se deu necessariamente porque estava desocupada de seus afazeres domésticos - ela continuava cozinhando, limpando e lavando roupas.  Aquele “descansar” estava, sem dúvida, ligado à viagem, ao ato de sair do lugar-comum. 
    Em outra definição conotativa, a viagem seria como um remédio, a solução ideal para se curarem todos os fracassos, decepções, tédio e ansiedade. Foi traída? Viaje. Está doente? Viaje. Todos os problemas serão resolvidos.
    No entanto, acredito que a cura esteja no tempo e viajar é o entretenimento durante essa necessária espera. A verdadeira viagem deve ser feita, para a cura plena, dentro de nós, em primeiro lugar; de dentro para fora.



Conto

  Superação

    Alcançou a escada e parou. Ele sabia que por ali não podia seguir. Retornou e perguntou o  local do elevador ao homem que limpava os vidros do prédio. Não havia. Alguém teria que carregá-lo, se quisesse subir. Sem jeito, pegou o cartão da bolsa e, estendendo os braços, colocou-o dentro da caixa de correio. Pelo menos ela saberá que estive aqui, pensou, acessando a calçada. O corpo doía, mas não se aproximava da sensação de fracasso que corroía seus pensamentos. Os pedregulhos da rua travavam as rodas da sua cadeira, mas a lembrança de que nunca mais ia caminhar bloqueava seu espírito.
    No semáforo, aguardou alguém aparecer para ajudá-lo com o degrau que separava o passeio do asfalto. Era feriado e, naquele horário, poucos pedestres circulavam por ali. Desistiu. Desejava, com pressa, chegar em casa, o choro já exigia liberdade.
    Ajeitou-se na cadeira e, posicionando as rodas de forma transversal ao degrau, avançou. O impulso não foi organizado e o seu corpo acabou por inclinar-se mais do que o previsto. Com o deslocamento, a cadeira virou e ele caiu. A areia do asfalto machucou-lhe o rosto. Os gritos não saíam da garganta, eram as lágrimas que clamavam por socorro. Tentou, em vão, se arrastar até o acostamento. Estava preso no cinto e não conseguia, na posição em que se encontrava, alcançar a fivela. Lembrou-se do celular que levava na bolsa. Dobrou os braços para conseguir desamarrá-la da cadeira. Com o aparelho na mão, hesitou. Não sabia para quem ligar. Ninguém o esperava. O braço já adormecia quando o telefone tocou. Era ela que ligava. Naquele estado, não podia atender, não podia falar. Na segunda chamada, reconsiderou. Talvez sua voz lhe daria a força necessária para sair daquela situação.
    - Oi, li seu cartão. Onde você está?
    - Pois é. Tive um problema. 
    - Queria dizer que também gosto de você. Se quiser, ficamos juntos e superamos essa tristeza. Eu quero.
    - Eu também. Me aguarde. Estou chegando logo, logo. 


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3º lugar - Tiago Pedroso



Miniconto

  Luta Vã

No relógio, cinco e vinte. Água fria no rosto ainda morno. Engole o café antes da batalha. Dois humilhantes pra ir, dois pra voltar. Chega em casa nocauteado. Os braços pesam mais que a consciência. Rosto desfigurado. Pernas adormecidas. Foi uma saraivada de ataques e esquivas. Por pouco não jogou a toalha. Alguns golpes que ultrapassaram a guarda. Outros abaixo da linha da cintura. Dezoito em ponto. Salvo pelo gongo. 
- Como vão as coisas, seu Pedro, sempre na luta?
- Por baixo, mas dando soco. Amanhã é dia de São Pega.



Poetrix

  Não posso ser lido

Assim mesmo tu teimas
Pousa em mim esses olhos
Acabas com minha sina



Poema Livre

  Parto (A)normal

Quando nasce um leitor,
Todos os livros batem páginas.
Onde nasce um leitor,
A luz favorece as serifas.
        Como nasce um leitor?
        Enrolado no cordel angelical.
        Pra que nasce um leitor?
        Para questionar o próprio natal.
Ao nascer um leitor,
Morre no parto um ignorante.
Nascendo um leitor,
Renasce uma biblioteca inteirinha.
Agora escreve, escritor
Escreve que a maternidade anda cheia.
Escassos volumes, tamanha natalidade.

Escreve, escritor
Leitores já nascem famintos
vorazes por essa historinha.



Crônica

  Homem ao mar

    “Atenção, senhores passageiros, informamos que, devido às más condições do tempo, o aeroporto encontra-se fechado para pousos e decolagens. Sem previsão de retorno.”
    - Navegar é preciso. Voar é precário.
    Concordei sorrindo e achei até espirituoso o comentário do senhor que estava na minha frente na fila do check-in. Deveria ter encarado como um presságio. Depois de perder o teto, fiquei sem chão: “overbuque”.
    Essa expressão, abrasileirada na crônica por este grosseiro rapaz aqui, substitui o que as empresas aéreas deveriam nos dizer: olha, vendemos mais passagens do que assentos disponíveis e, desta vez, você ficou de fora. Tome aqui uma barra de cereal e aguarde o próximo voo.
    A recíproca também deveria ser permitida. Quando chegasse a conta do cartão de crédito, diríamos às companhias: olha, gastei mais do que o previsto e não pagarei esta parcela. Tome aqui uma aguinha e aguarde a próxima fatura. “Overrevanche”. 
    Passada a fase da fúria, chegando no estágio da raiva controlada, fui informado por uma dessas moças da mesma empresa, que dão informações completamente diferentes umas das outras, que o próximo avião sairia dali a três horas. Depois de mudarem quatro vezes o portão de embarque, que já estava mais para um portal, acomodei minha bagagem de mão. Minhas malas já haviam sido despachadas. Só nunca descobri pra onde.
    Sinto em viagens de avião a sensação de estar em um eterno elevador. Com a diferença das aeromoças que, talvez por estarmos pertinho do céu, parecem anjos barrocos, enquanto nos elevadores, demônios perguntam do fosso: desce?
    Tem aquela voz canalha do comandante anunciando a altitude e velocidade. Puro sarcasmo! As minipoltrononas. As comidas com gosto de isopor. Definitivamente, não gosto de voar. Imagino quando era permitido fumar na aeronave. E tinha gente que fumava mesmo.  A falta de educação viaja na janelinha.
    Meu trajeto era para ser feito em uma hora e meia. Eu já estava havia cinco horas tentando chegar. Desembarquei quinze minutos depois do término do meu compromisso. Munido de todos os meus argumentos, comprovantes e estoque de paciência, depois de duas horas e meia conseguiram me alocar em um voo de volta pra casa. Com escalas.
    Saldo da viagem: sete horas em aeroportos, quatro horas dentro de aviões. Compromisso perdido e bagagem extraviada. 
    Na próxima, vou de navio.



Conto

  Sístoles e Diástoles

    A visão da janela até que não era das piores. Acendeu um cigarro ainda na cama. Não fosse a cadeira, que já andava emperrando nas subidas, desceria até o passeio para descobrir afinal o que carregava na mala em formato de coração a moça que, diariamente, cruzava seu campo de vista em direção à rodoviária.
    “De hoje não passa”. Estava decidido. Precisava, de qualquer jeito, esclarecer aquela rotina que tanto a instigava. Talvez fosse só mais uma trabalhadora de outra cidadezinha que fazia seu trajeto diário da empresa pra casa, de cada pra empresa. Mas e a mala em forma de coração que ela desliza pelas calçadas sem desviar de ninguém? Limpou o cinzeiro, que já estava abarrotado de baganas, e foi até o armário apanhar outra carteira.
    Seus cabelos negros e bem curtinhos, acima dos ombros, mostravam a nuca, onde pousava uma tatuagem que nunca consegui identificar da distância onde estava. 
    Bateu com o isqueiro, que andava falhando, na ponta da mesa, e acendeu outro cigarro. E aquele coração a cabresto atravessava a passarela. A respiração viciada perdeu força antes da tragada profunda. 
    Quisesse mesmo saber daquela estranha, teria que sair de casa, coisa que não acontecia há alguns anos, e abordar a moça. Perguntaria sobre o conteúdo da mala e desvendaria a tatuagem. Só isso. Ela decerto acharia esquisito. Mas quem se importa com as maluquices de um pobre aleijado? Acabou o cigarro. Um pretexto a mais.
    Depois de diversas tentativas frustradas, conseguiu colocar a velha cadeira de frente para o corredor. Até a porta de saída do prédio, são três lances de escada. Catou a maior bagana do lixo e acendeu com o último fósforo da caixinha. Tragou coragem de uma única puxada. Num esforço incomum, conseguiu vencer o primeiro lance. Suando muito, foi se batendo e desequilibrando até os últimos degraus.
    Ofegante e já meio tonto, conseguiu chegar até aquela porta. Aquelas pessoas todas apressadas e o ruído da rua lhe causaram náusea. De uns tempos pra cá, aquela era a coisa mais ousada que havia feito. Tinha um propósito. Não iria desistir. Sentiu falta de um cigarro para lhe devolver o ímpeto. 
   A cadeira dava sinais de alerta. Nesse instante, teve a sensação de estar sendo observado. “É ela”. Quando foi se virar em direção à rodoviária, um coração, arrastado pela alça, palpitava nos paralelepípedos.
    Pediu um avulso na banca de revistas. Exausto. Os braços dormentes. Uma roda presa aumentava ainda mais o esforço. Quanto mais perto ia chegando, mais a boca secava. No peito, uma pressão. A camisa molhada. O braço esquerdo já não sentia. Alguns metros e acabaria aquela tortura. Só mais alguns metros. “A tatuagem!”. Era um coração invertido ou seus olhos embaçados o estavam traindo. Num derradeiro impulso, conseguiu tocá-la. A moça virou-se. Não tinha rosto. Apenas um buraco de carne. Caiu sobre a mala, que se abriu inteira. De dentro, salta um coração vermelho-sangue. Viscoso e quente com seus aurículos e ventrículos, sístoles e diástoles.