7.6.13

Dá licença, por favor?
Vera Karam

Personagens: 
Homem
Mulher

Plateia de um teatro. Uma mulher está sentada. Ao lado dela, um lugar vago. Um homem se aproxima.

HOMEM
Tem alguém sentado aqui?

MULHER
Aparentemente, não. Mas a gente nunca sabe... Eu sou espírita, o senhor entende...

HOMEM
Não, minha senhora, pergunto se alguém VAI sentar aí.

MULHER
Bem, eu sou espírita; não sou vidente. Como é que eu posso saber?

HOMEM
A senhora não entendeu: eu quero saber se este lugar está reservado.

MULHER
Não sei. Na verdade, eu própria, antes de vir ao teatro, nunca sei se devo reservar ou não. O senhor acompanhe o meu raciocínio, por favor: se eu venho aqui reservar e chego de noite e vejo que não precisava tê-lo feito, perdi o meu tempo, certo? Se não reservo, venho até aqui e está lotado, pior ainda. 

Tenho de voltar para casa de noite vestida para ir ao teatro, sem ter assistido à peça. (Viajando.) O senhor sabe que eu, quando tinha uns dezoito, vinte anos, costumava ir com meu irmão a um bar nas sextas-feiras onde supostamente encontraria um rapaz no qual estava interessada. Digo “supostamente” porque nunca marcávamos nada. Naquela época se usava muito isso de não marcar as coisas, os encontros eram assim, quando “pintasse”, a frase mais corriqueira nas despedidas era “a gente se vê por aí”, o que fazia com que perdêssemos um tempão andando “por aí”, na ânsia de provocar um encontro “casual”. Agora, o senhor me diga: não seria mais fácil marcar um encontro? Não economizaríamos tempo, ao invés de ficar brincando de esconde-esconde de um bar para o outro?

HOMEM
Minha senhora...

MULHER

Bem, mas como eu dizia, eu e o meu irmão íamos ao tal bar com o fito de encontrar o fulano esse de quem eu falava. O fito, naturalmente, era só meu, não do meu irmão. Sempre perguntávamos: levamos duas chaves ou uma só? Eu achava que se levássemos duas chaves daria azar: o camarada não ia aparecer e teríamos carregado duas chaves à toa. Por outro lado, vamos que levássemos uma só chave e a criatura aparecesse? Pois era o que geralmente acontecia. Levávamos uma só chave e depois o primeiro a chegar tinha de ficar acordado, esperando o outro chegar para abrir-lhe a porta. Éramos muito solidários, eu e o meu irmão. Ainda somos. (Ri lembrando.) Bons tempos aqueles em que, bem ou mal, mais cedo ou mais tarde, eles acabavam aparecendo...

HOMEM
Minha senhora, eu gostaria...

MULHER
O mesmo se dá com a questão dos guarda-chuvas, o senhor não acha?

HOMEM

(Interessado.) Como?

MULHER

O senhor já reparou que sempre que parece que vai chover, se a gente leva guarda-chuva não chove e se a gente não leva cai um temporal? Então, eu pergunto o que é preferível: carregar um guarda-chuva o dia inteiro sob o sol, ou não carregar e passar o dia inteiro encharcado? Ahn??? O senhor já pensou seriamente sobre o assunto?

HOMEM

Bem, pra dizer a verdade...

MULHER
Acho que o senhor deveria.

HOMEM
Carregar sempre um guarda-chuva?

MULHER
Não. Pensar sobre o assunto.

HOMEM
Tudo bem, eu prometo pensar, mas, quem sabe, agora...

MULHER
O senhor comprou o seu ingresso com antecedência ou agora no local?

HOMEM

Bem, pra ser bem franco, nem fui eu quem comprou...

MULHER
Não? O senhor está usando o ingresso de outra pessoa? O senhor roubou este ingresso?

HOMEM
Não, não se trata disso. Mandei um boy hoje de tarde.

MULHER
O senhor tem um boy?

HOMEM

Bem, ter ter, propriamente, não. Temos um na firma.

MULHER
E o senhor usa esse boy para fins particulares? O senhor acha que está certo agir assim?

HOMEM
Bem, quase sempre aproveito quando ele tem de fazer algum servicinho para a firma...

MULHER

Eu não acho isto muito correto, não acho mesmo. Mas cada um, cada um...

HOMEM
Por favor, não vamos discutir ética numa hora dessas. Além do mais, daqui a pouco começa a peça e eu estou aqui em pé, quem sabe a senhora me permite...

MULHER
Mas isso não depende de mim.

HOMEM
Como, não depende?

MULHER
O senhor já parou para pensar que nesse momento pode estar chegando alguém que não mandou um boy comprar ingresso, alguém que saiu de casa, pegou dois ônibus para chegar até aqui e, por um engano da bilheteria – vamos colocar assim – venderam um lugar, sem que haja onde sentar? Quem o senhor acha que tem mais direito de sentar: o senhor que ficou tranquilamente sentado em seu escritório, enquanto um boy percorria a cidade loucamente, ou essa pessoa que pegou dois ônibus? Hein?

HOMEM
Bem, eu nunca pensei nisso...

MULHER
Pelo jeito o senhor não tem o hábito...

HOMEM
Ora, por favor, o hábito não faz o monge.

MULHER
Não é desse hábito que eu estou falando, e sim do hábito – no sentido de costume – de pensar muito. O senhor não o tem, estou certa?

HOMEM
Acho que a senhora não deveria fazer pré-julgamentos a meu respeito.

MULHER
Ah, o senhor está com medo de que eu descubra que o senhor não é esta pessoa corretíssima que quer que pensem que é.

HOMEM
A senhora está enganada.

MULHER
Ao contrário. O senhor é que está tentando se enganar. Tem medo de descobrir que não é nenhuma maravilha, que não está, por assim dizer, com esta bola toda, que esta imagem de homem sério, respeitador e correto não passa de... justamente de uma imagem que projetou e que de tanto iludir os outros acabou iludindo a si próprio.

HOMEM
Minha senhora, eu não lhe dei essas liberdades.

MULHER
Liberdade não se ganha, se conquista! Eu não preciso que o senhor me dê nada, entendeu? O senhor pensa que pode comprar a tudo e a todos, mas a mim o senhor não compra, ouviu bem? Está perdendo o seu tempo.

HOMEM
Como é que a senhora pode dizer uma coisa dessas?

MULHER
Conheço o seu estilo, rapaz... É daqueles que vão chegando de mansinho e tomando conta.

HOMEM
A senhora não sabe nada de mim.

MULHER

Conheço o seu passado. Aliás, conheço o seu passado, o presente e posso até imaginar o seu futuro. Sim, senhor...

HOMEM
Acho que vou ter de chamar o lanterninha.

MULHER

(Ri.) Não existe “lanterninha” em teatro. (Com desprezo.) Bem se vê que o senhor não tem o hábito de ir ao teatro. Vai ver, só veio hoje porque não tinha nada melhor para fazer; porque os seus planos mais ambiciosos falharam, então o senhor pensou: “Que maçada! Não me resta mais nada para esta noite a não ser ir ao teatro. Vou ver como é que é, afinal há gente que vai ao teatro, deve ter lá seus encantos”.

HOMEM
A senhora esquece que eu já comprara os ingressos anteriormente.

MULHER

O senhor, não. Segundo me disse, o senhor mandou um boy comprar o seu ingresso.

HOMEM
Sim, mas eu quero dizer que já havia planejado vir, não foi um programa de última hora, como a senhora diz.

MULHER
É, o senhor tem cara mesmo de ser daqueles que planejam tudo. Daquele tipo que não dá ponto sem nó.

HOMEM
Minha senhora, por favor, a peça já vai começar e eu preciso de uma resposta.

MULHER
Sei, o senhor é daqueles que sempre precisam de respostas pra tudo. Meu amigo, elas não existem, creia-me.

HOMEM
Afinal, eu posso sentar?

MULHER
(Nem ouve.) A gente passa a vida atrás de respostas que não existem, se a gente se preocupasse menos...

HOMEM
A senhora quer me dar licença...

MULHER
...com obter respostas e percebesse que o importante...

HOMEM
A senhora por favor...

MULHER
(Volta a falar olhando pra ele.) Não sou eu quem tem de querer ou não. O senhor tem esta resposta dentro de si. Não cabe a mim.

HOMEM
Por favor...

MULHER
Ah, agora pede por favor...

HOMEM
Eu estou implorando, a peça vai começar!

MULHER
Chora, implora, pede perdão, pois agora é tarde demais, entendeu? Não adianta vir com lamúrias. Agora não adianta mais. “Agora já passa da hora.” Eu não vou voltar atrás nas minhas decisões. Quem o senhor pensa que eu sou? Pensa que é assim? Muito fácil pra vocês, homens, vão e vem a hora que querem e fica tudo por isso mesmo. Não, isso tem que acabar e, se a gente não tiver pulso firme, vocês tomam conta, ah... mas comigo não, ah... mas não mesmo, entendeu? Eu sou uma mulher de fibra. Vocês têm que aprender que não vão sempre sair impunes e é de mulheres como eu que depende essa mudança de comportamento, de... de postura. Vocês fazem o que querem, pensam que podem pisar em todo mundo. Aposto que para chegar onde chegou, o senhor passou por cima de muita gente. Para ter esse boy que sai para lhe comprar ingressos, o senhor deve ter tirado muita gente boa do seu caminho.

HOMEM

(Começa a se desesperar.) A senhora não tem o direito de falar assim comigo, eu não fiz nada pra senhora, eu...

MULHER
Ah, para mim ainda não, mas então o senhor admite que já fez poucas e boas a outras pessoas, que sacrificou inocentes na realização de seus intentos. Admite que é um homem sem escrúpulos, que para conseguir seus objetivos não mede esforços, não hesita em prejudicar a quem quer que seja.

HOMEM
Por favor, eu lhe peço, depois da peça a gente conversa sobre isso, mas agora eu lhe peço, eu faço o que a senhora quiser, mas me deixe sentar. (Olha em volta procurando ajuda. Diz para o público.) Ai de mim. Mas será que ninguém faz nada?

MULHER
E o senhor já pensou quantas pessoas, neste exato momento, estão de pé nas filas dos ônibus, nas fábricas...

HOMEM
Eu não tenho culpa das injustiças do mundo, eu só resolvi vir hoje ao teatro. (O homem vai se ajoelhando, começa a chorar.) Eu não tenho culpa de nada, não tenho culpa.

MULHER
Psiu! Silêncio! A peça já vai começar. Por favor, não atrapalhe. Se o senhor não sabe se controlar, não devia sair de casa, muito menos vir ao teatro. Olha, apagaram as luzes, os atores já vão entrar. Contenha-se,  sim? Essa, agora... (Para a plateia.) Cada um que me aparece.      
            

Peça publicada em Vera Karam: obra reunida (IEL/Corag, 2013)