23.10.12

Eu sou um outro
Apresentação do livro Vemos as coisas como somos, de Guilherme Smee

Das cinco epígrafes que abrem o livro de contos de Guilherme Smee, certamente a mais contundente é a de Carl Gustav Jung: “Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, desperta.” São dezesseis narrativas quase breves (o miniconto não funciona numa estética que mergulha fundo na enviesada condição humana dos protagonistas), uma vez que a brevidade, ainda mais aquela que tipifica o conto, é insuficiente para atender às exigências do projeto ficcional do autor. O personagem como alteridade de si mesmo. 

Não existe um “si mesmo”, parece-nos dizer o autor de Vemos as coisas como somos. Isso fica bem claro no texto introdutório, espécie de conto-prólogo, “Egotrip”, na síntese do neologismo, a fixação de um vocábulo que retrata um ego coletivo, um ego mutante, um ego que se desloca, que anda – não a esmo – em busca de pontos de contato, e nunca é o mesmo nem jamais, quando experimenta uma imersão, parece ser exatamente o ego esperável. 

Há turbulência, e forte, nessa espécie de movimento das placas tectônicas da mente, das emoções, das intenções, das personalidades. O homem se refunda a cada nova relação e, ainda, a cada novo emprego, a cada nova viagem, a cada nova (e inédita) reflexão. O homem se descobre outro e já não pode de fato ser o anterior. Vem à tona outro naquele que nos narrava uma história que já não podemos identificar pela voz que teceu-lhe as primeira sentenças. 

A surpresa é que este outro, ao mesmo tempo que realiza ações bem diversas e constata o que o próprio sujeito protagonizou anteriormente – fatos agora esquecidos, que nem parecem servir de degrau para um novo patamar (nem mais alto nem mais baixo) -, este outro mantém uma essência difusa que emana, como na filosofia de Berkeley, para o cenário, o entorno, e as coisas já então, vistas de outro ângulo, num outro momento particularíssimo (e prestes a mudar e, com ele, no bojo trazendo nova revelação), não poderiam de fato ser as mesmas, e o conflito inicial migra para novo conflito. 

Na verdade, o mais essencial dos conflitos: o de capturar o instante em que somos exatamente o que somos e, através desse olhar pessoa, o desenho de um mundo que enfim compreendemos. 

Mas parece que tal encontro é impossível, dizem-nos as narrativas de Guilherme Smee. Projeto mais que ambicioso, grandioso, inédito em nossa literatura. 

Por isso o autor merece nossos parabéns e não podíamos deixar de trazê-lo a público através de uma edição digna de um trabalho tão original. 


Os editores


Do livro Vemos as coisas como somos (IEL / Corag, 2012)